sábado, 3 de outubro de 2009

Os Velhos Uruburibes Atacam na Nova América Latina

Por José Arbex Jr.

Qual a relação entre o golpe desferido em 28 de junho, em Honduras, que depôs o presidente eleito Manuel Zelaya, e a disposição do presidente colombiano Álvaro Uribe de permitir a instalação de três bases militares estadunidenses em seu país, anunciada com estardalhaço no início de agosto? Aparentemente, nenhuma.
Os golpistas que depuseram o presidente Manuel Zelaya tinham seus interesses próprios: eles abortaram um processo de consulta popular sobre a eventual convocação de uma Assembléia Constituinte, que, obviamente, colocaria em risco o monopólio do poder exercido há três décadas pelos dois partidos das oligarquias: o Liberal (ao qual
pertencem tanto Zelaya quanto os próprios golpistas) e o Nacional. Uribe, de sua parte, resolveu, soberanamente, abrir mão da soberania, e permitir a instalação das novas bases estadunidenses com o objetivo de reforçar o combate contra o narcotráfico e as Farc, tendo como justificativa o recente fechamento da base militar dos Estados Unidos em Manta, no Equador, por determinação do presidente Rafael Correa.
Conclusão: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, para utilizar um aforismo do filósofo máximo do neopetismo, José Genoíno. Essa versão seria até defensável, não fosse a intromissão de uma palavrinha mágica, que muda tudo: energia (petróleo, biodiversidade, água, minérios etc.).
Honduras é rica em petróleo, como demonstram prospecções feitas por uma empresa norueguesa, contratada por Zelaya, que também resolveu integrar o seu país ao grupo Petrocaribe e à Alba (Aliança Bolivariana das Américas), ambos criados pelo governo Chávez. Não bastasse isso – informa Frida Modak, ex-secretária de imprensa do governo Salvador Allende –, o projeto de Zelaya, no caso de uma eventual nova constituição, era estabelecer que os recursos naturais hondurenhos não poderiam ser entregues a outros países. Isto é, Zelaya preparava-se para lançar a sua própria versão da campanha “o petróleo é nosso”. E, por fim, a nova Constituição, segundo Zelaya, estabeleceria o fim do monopólio dos meios de comunicação, assegurando o direito à participação das comunidades (o que explica, aliás, o apoio dos “barões da mídia” local ao golpe).
Quem não viu esse filme antes? O programa de governo de Zelaya – não importam, aqui, suas motivações – contraria os interesses dos grupos estadunidenses que já controlam uma parte substantiva das reservas latinoamericanas. Seria muita ingenuidade – para dizer o mínimo – imaginar que o golpe em Honduras foi articulado sem a participação do grupo neoconservador incrustado no Departamento de Estado dos Estados Unidos e porta-voz das empresas que exploram as reservas mundiais de petróleo e fontes de energia, o mesmo grupo que articulou a invasão do Iraque, entre outras coisas. O próprio embaixador estadunidense em Honduras, Hugo Llores, foi nomeado pelo governo Bush-Cheney.

Influência regional
Há, aqui, um interessantíssimo fator complicador. O governo Barack Obama, desejoso de recuperar a influência estadunidense no hemisfério após o desastre Bush, multiplicou declarações segundo as quais acabaram-se os tempos em que os Estados Unidos se julgavam no direito de ditar os rumos da América Latina. Como reflexo dos supostos “novos tempos”, a OEA suspendeu o veto histórico à participação de Cuba e a Casa Branca abriu novas possibilidades de diálogo com Havana. Para os republicanos e neoconservadores estadunidenses – e mesmo para uma parcela “ortodoxa” dos democratas -, essas medidas equivalem a um inaceitável abandono da Doutrina Monroe (“a América para os americanos”), que, desde 1823, orienta a política externa dos Estados Unidos para a América Latina. Esse quadro estabelece, no mínimo, uma tensão entre a retórica de Obama e a prática dos responsáveis pela política externa estadunidense.
Tensão semelhante foi criada em 1975 – observa o pesquisador estadunidense Greg Grandin –, quando, após o escândalo de Watergate e o fiasco do Vietnã, os arquitetos da política externa do governo Jimmy Carter declararam “obsoleta” a Doutrina Monroe, considerada “inapropriada e irrelevante para as novas realidades e tendências futuras” por Sol Linowitz, então presidente da Comissão para as Relações Estados Unidos – América Latina. Foram os anos que deram impulso ao processo de “transição” das ditaduras militares para as chamadas novas “democracias”. A reação não se fez esperar: veio na forma da eleição de Ronald Reagan e a tomada de assalto da Casa Branca pelos neoconservadores arquitetos do neoliberalismo (mantido e ampliado, de modo muito eficaz, nos anos 90, pelo democrata Bill Clinton). A série “Rambo”, não por acaso lançada por Hollywood logo após a posse de Reagan, reflete com exatidão o espírito da época.
A América Latina, em particular, foi objeto de ataque, já em 1980, por parte de um grupo de intelectuais e políticos estadunidenses de ultradireita, que lançou o Documento de Santa Fé (nome da cidade do Estado do Novo México onde o seu primeiro encontro foi realizado), contendo diretrizes que o presidente Ronald Reagan deveria adotar
para as Américas. O centro do documento é, precisamente, a defesa da Doutrina Monroe. Fazia parte do grupo o historiador Lewis Tambs, depois indicado para o cargo de embaixador dos Estados Unidos na Colômbia, e criador, nos anos 80, da expressão “narcoterrorismo”, para caracterizar a atividade dos grupos guerrilheiros colombianos.
Em 8 de abril de 1986, o então presidente Ronald Reagan previu, pela primeira vez, mediante a adoção de um decreto, a possibilidade de utilizar unidades militares de seu país contra narcotraficantes. Estes passaram a ser considerados “ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos”.

Outra Retórica
Em 1988, o Documento de Santa Fé II -- uma estratégia para a América Latina na década de 1990 estabelecia claramente a suposta relação entre narcotráfico e subversão comunista: "As Américas ainda são objeto de ataque. Alertamos para esse perigo em 1980. O ataque se manifesta ba subversão comunista, terrorismo e narcotráfico. A capacidade de luta das democracias latino-americanas para combater esses ataques foi solapada pela estagnação econômica de toda a região, agravada pela dividida. (...) A rede comunista subversiva e terrorista se estende desde Chiapas, na parte sul do Máxico, até o Chile, transformando toda a costa do Pacífico, ao sul do Rio Grande, em cenário de conflito aberto. (...) Os vastos recursos que gera o narcotráfico aumentaram a capacidade da ameaça subversiva, além daquilo que se tinha imaginado inicialmente. A possibilidade de nos vermos forçados a envolver forças militares estadunidenses no combate está publicamente exposta diante de comitês do Congresso."
Preparava-se, então, a base doutrinária para justificar o envio de tropas, primeiro, para o Panamá (a "Operação Causa Justa" que, em dezembro de 1989, depôs o presidente Manuel Noriega) e depois para a Amazônia (com o Plano Colômbia, lançado em 1999, por Bill Clinton). Em 18 de Outurbo de 2000, com extrema arrogânica, o então vice-ministro da Defesa dos Estados Unidos, James Boedner, declarou que, "o Plano Colômbia será executado com ou sem a solidariedade nacional", durante a Conferência Ministerial de Defesa das Américas, realizada em Manaus. A tradução disso em português claro era: gostem ou não os latinoamericanos, a Colômbia sofrerá intervenção militar dos Estados Unidos.
É mais do que óbvio que, com o fim da Guerra Fria e da "ameaça comunista", a retórica do "combate ao narcotráfico" ou ao "narcoterrorismo" serviu apenas de justificativa para a ocupação militar da Amazônia, assim como a deslavada mentira das "armas de destruição em massa" dariam o pretexto para a invasão do Iraque. A arrogância ianque atingiria o auge com o governo Bush e o estado de exceção por ele implantado nos Estados Unidos após o atentado de 11 de setembro de 2001. Mas a atual crise mundial do capitalismo, combinada com o fiasco no Iraque e no Afeganistão, que permitiram a eleição de Barack Obama, restringiram a capacidade de ação da Casa Branca. Na América Latina, o quadro ficou ainda mais complicado com o fracasso do golpe contra Hugo Chávez, em abril de 2002, e a eleição de vários governos "não confiáveis" -- ainda que não sejam, exatamente, governos dispostos a uma ruptura radical com o imperialismo.
Barack Obama não pode, no atual contexto, adotar sem mediações as medidas imperiais que caracterizaram o seu antecessor. É obrigado a, pelo menos, simular a disposição ao diálogo. Mas ele não se sentiu com forças para -- ou, simplesmente, não estava nos seus planos -- varrer o lixo neo conservador da Casa Branca, que continua a ocupar cargos estratégicos, em especial nos órgãos responsáveis pela formulação da política externa. Nesse quadro geral, a Colômbia de Álvaro Uribe ocupa um lugar especial.
Do ponto de vista da Casa Branca, a Colômbia de Uribe joga, na América Latina, papel similar ao de Israel no Oriente Médio, mas com um grau maior de subordinação a Roma (Israel ainda tem certa autonomia: por exemplo, seu governo resiste abertamente à determinação de Obama no sentido de interromper a criação de novas colônias nos territórios ocupados). As constantes provocações do exército colombiano contra a Venezuela, o bombardeio totalmente ilegal do território equatoriano, em março de 2008, a pretexto de destruir as Farc e, agora, a disposição de permitir a instalação de bases militares estadunidenses no país -- operação tão indecente, tão afrontosa à soberania nacional e à dignidade dos povos da América do Sul, que até o governo Lula foi obrigado a demonstrar sua "preocupação" -- demonstram que Uribe mantém com Washington as tais "relações carnais" um dia reivindicadas pelo patético ex-presidente argentino Carlos Menem. Ele é o homem indicado para fazer o "serviço sujo".

Ofensiva Militar
Barack Obama nada fez para mudar esse quadro. Muito ao contrário. A eventual instalação das novas bases na Colômbia não poderia, obviamente, ser realizada sem o seu aval, assim como é com sua autorização que os Estados Unidos mantêm mobilizada a Quarta Frota, encarregada de "vigiar" a América do Sul (curiosamente, mobilizada após as descobertas das reservas do pré-sal no Brasil, como observou o presidente Lula). Além disso, ele apóia a Iniciativa de Mérida, equivalente ao Plano Colômbia para o México e a América Central, com a injeção de bilhões de dólares para forças militares e esquadrões da morte, sempre com o objetivo oficial de "combate ao narcoterrorismo". Multiplica seus ataques verbais a Hugo Chávez -- no mesmo estilo e tom adotado por George Bush -- e se declara "preocupado" com a "crescente penetração" da China e até do Irã na América do Sul (o Equador considera a hipótese de ceder a Pequim o direito de usar as instalações da base de Manta).
É impossível, portanto, dissociar a golpe em Honduras da nova ofensiva militar ianque na Colômbia, cujo porta-voz é o sabujo Álvaro Uribe. Honduras serve como uma espécie de "laboratório", um ensaio que poderá dar instrumentos ao governo Obama sobre como agir numa América Latina cada vez mais tensa. Em Honduras, a aliança entre as oligarquias locais e o Departamento de Estado estadunidense conseguiu fazer aquilo que foi tentado sem sucesso na Bolívia: a insurgente oligarquia racista de Santa Cruz de La Sierra foi, pelo menos por enquanto, contida pelo governo Evo Morales.
A luta de classes está em pleno desenvolvimento nas Américas. Obama governa em situação de crise doméstica -- seu índice de popularidade já despencou, embora ainda seja alto, em torno dos 55% -- e enfrenta contradições que não limitavam as ações de George Bush. Em contrapartida, também a América Latina se agita, num conjunto extremamente complexo e dinâmico, marcado, sobretudo, pelos movimentos de resistência popular, que, não raro, forçam os seus governos a irem mais longe do que desejariam no enfrentamento com os Estados Unidos. É uma situação de crise profunda, em que, por isso mesmo, situações imprevisíveis e até improváveis tornam-se possíveis. Os tempos que se aproximam prometem grandes emoções.

JUNIOR Arbex, José, "Os velhos uruburibes atacam na nova América Latina", Caros Amigos, setembro 2009, p. 8-9.

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